segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma joia emprestada

Dom Murilo S.R. Krieger, scj - Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil
 4 de novembro de 2013
Tempos atrás, um casal amigo perdeu uma filha. Sabia que os dois, na sua dor, esperavam uma palavra minha. De minha parte, sentia necessidade de demonstrar-lhes minha proximidade e unidade, mas as circunstâncias não me permitiam estar perto deles, abraçá-los e ficar ao seu lado, em clima de respeito, silêncio e oração. Como não me era possível telefonar-lhes, mandei-lhes uma carta. Ontem, dia em que fizemos comemoração de todos os fiéis defuntos, lembrei-me desses meus amigos. Pensei, também, em tantos outros pais que vivem uma dor semelhante a deles. Decidi, então, repartir com todos o que lhes escrevi. Afinal, diante de determinadas experiências de dor, sentimos o quanto estamos próximos uns dos outros e quanto o sofrimento nos ajuda a descobrir valores que, nos primeiros momentos de dor, somos incapazes de perceber. Eis o texto:

“Soube da dor que se abateu sobre vocês. Pensando no que lhes dizer, lembrei-me de uma lenda que li certa vez. Era mais ou menos assim:

Um homem vivia feliz com sua família. Além de uma esposa dedicada e de três filhos que lhe davam muita alegria, tinha o necessário para viver. Certa vez, precisou viajar para longe, ficando muito tempo sem ver sua esposa e filhos. Nesse meio tempo, um dos filhos veio a falecer. A esposa, mulher forte, enfrentou aquele momento com fé, coragem e determinação. Sua preocupação era uma só: como contar o fato a seu esposo, quando ele chegasse? Pediu a luz do Espírito Santo e nele passou a confiar. Sabia que, na hora certa, teria a palavra adequada em seus lábios.

Quando o esposo voltou ao lar, houve uma grande festa. Abraçou a mulher e dois dos filhos, e começou a lhes contar as novidades. Mas, de repente, perguntou: ‘E o outro, onde está?’ A esposa apressou-se em lhe responder: ‘Já falaremos sobre isso. Antes, porém, quero saber mais sobre esses meses em que você ficou fora de casa.’ Ele passou a lhe contar o que tinha feito mas, de vez em quando, voltava a lhe perguntar: ‘E o outro filho? Aliás, notei que você está um tanto abatida!’ A resposta da esposa era sempre a mesma: ‘Calma, já falarei sobre ele!’

Lá pelas tantas, ela lhe disse: ‘Sabe, durante sua ausência, um amigo nosso deixou comigo três joias de imenso valor. Queria que eu as guardasse. Eram belas, belíssimas, tanto assim que, quando ele veio buscar uma delas, não lhe quis devolver. Afinal, já estava acostumado com ela, gostava de vê-la e achava que não poderia viver sem tê-la perto de mim. Disse-lhe que não aceitava a ideia de ficar guardando somente duas das joias. O que você me diz sobre isso, querido?’ Ele lhe respondeu: ‘Não estou entendendo o que está acontecendo com você. Afinal, você nunca teve um comportamento assim! Nunca se prendeu a nada. Como pode, agora, ser assim tão apegada?’

‘Acontece’, disse-lhe a esposa, ‘que nunca tinha visto joias como essas. São muito lindas! Como devolver, mesmo que uma só?’ E assim a conversa continuou. O esposo insistindo que as joias não eram dela e que, portanto, ela precisava devolvê-las. A esposa, por sua vez, voltando sempre ao mesmo ponto: como viver sem aquelas joias que lhe davam tanta alegria? Como viver mesmo que sem uma delas?…

Finalmente, o esposo lhe disse: ‘O assunto está encerrado! Não se pode ficar com o que não é nosso. Seria o mesmo que roubar. E, para ajudá-la, vou com você devolver o que não nos pertence!’.

Foi a vez da esposa falar: ‘Está bem, faremos isso. Aliás, já a devolvi. Essa joia de que falo era o filho que ainda não o cumprimentou. Deus o colocou sob nossos cuidados nesses anos todos e, durante sua ausência, veio buscá-lo…’

Completei minha carta: ‘Preciso dizer-lhes mais a respeito de sua filha? Com vocês, agradeço a Deus por esta joia preciosa que o Senhor lhes confiou por alguns anos. Fica a dor da saudade. Fica um vazio imenso no coração de vocês. Mas, tenho certeza, com o tempo essa saudade será fonte de muitas alegrias, graças aos gestos de bondade e carinho que Deus, através dela, semeou em seus corações’.”

Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil

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