quarta-feira, 19 de março de 2014

“Desapareceu um avião!” – por Dom Murilo Krieger

 
Os noticiários das emissoras de rádio e televisão, os jornais e as redes sociais anunciaram na semana passada um grave desastre. Dessa vez, mais do que a queda de um avião, a surpresa foi com o seu desaparecimento. O drama desse acidente vai muito além do número de passageiros, que não é pequeno: 239 pessoas. Há circunstâncias em que a notícia da morte de apenas uma pessoa já é suficiente para dar origem a uma comoção mundial.
Por outro lado, todo ano, em nossas avenidas e rodovias, morrem milhares de pessoas – e parece que tal fato não nos causa mais comoção. Acostumamo-nos com os números de cada segunda-feira (“Foram 15 os mortos por acidentes nas estradas, neste final de semana”) ou depois de um feriado prolongado (“Acidentes nas rodovias causam a morte de 32 pessoas”). Tal insensibilidade faz com que motoristas continuem bebendo e dirigindo; que não se respeitem os limites de velocidade; ou que consideremos normal o tipo de ruas, estradas e rodovias que temos.
Volto ao avião que desapareceu há uma semana: em momentos assim, percebemos o quanto de verdade há no comentário do poeta inglês John Donne, feito num dia em que estava acamado: ao ouvir o toque dos sinos anunciando a morte de uma pessoa que ele nem sabia quem era, perguntou: “Por quem os sinos dobram?” Ele mesmo respondeu, ao sentir-se um pouco mais pobre por um ser humano que havia falecido: “Eles dobram por ti”. Sim, cada pessoa é única, insubstituível e de um valor imenso; com sua morte, todos nós ficamos um pouco mais pobres. Penso que é essa a convicção que se impõe a todos nós, diante de destroços de um carro, da notícia de um assassinato por motivo mesquinho ou de um avião que desaparece, levando consigo mil mistérios. Completam nossos sentimentos, em momentos assim, as fotos dos destroços ou os comentários sobre as possíveis causas do acidente, a reportagem com uma esposa desconsolada ou os detalhes dados por pais a respeito do último telefonema recebido do filho, momentos antes dele embarcar.
Um avião desapareceu! Dezenas de vidas podem ter sido tragicamente cortadas. Se confirmado o acidente, a companhia aérea lamentará o que aconteceu, os técnicos analisarão as causas do acidente e os assistentes sociais se debruçarão sobre os dramas dos parentes que ficaram. E as reuniões em família, celebrando a vida? E a conferência que não mais será feita? E a participação – que não haverá mais – em concertos ou em competições esportivas?
Fotógrafos amadores documentaram as cenas de embarque: os sorrisos dos homens sérios, os abraços dos amigos e as mãos abanadas para os familiares que ficavam. Os repórteres não registraram os sonhos de muitos, as alegres expectativas de todos e os sonhos de alguns. Dos sorrisos ficou a lembrança; dos abraços, a saudade. As mãos talvez permaneçam imóveis para sempre. Em situações assim, com os que morrem, morre todo um mundo – um grande mundo desconhecido, feito de lembranças, de momentos de alegria e de dor.
Normalmente, em desastres, nada se sabe dos últimos momentos vividos pelos acidentados. Terão sido momentos de preocupação ou de calma? De oração ou de desespero? Será que eles tiveram consciência do que estava acontecendo ou do perigo que enfrentavam?
Se qualquer um pudesse prever uma tragédia, quanto não daria para uma entrevista, uma foto ou uma palavra com aqueles que partiram com tanta despreocupação e alegria! E se eles próprios tivessem tido tempo e condições para rever suas ideias e projetos, o que pensariam? Que atitudes tomariam? Que olhar lançariam para a sua própria vida? É difícil prever como passariam a viver se, no último momento, o desastre pudesse ser evitado e eles tivessem a oportunidade de recomeçar tudo de novo.
Um avião desapareceu. Não se consegue restituir a vida aos que falecem. Não se pode mais penetrar no mundo que morre com eles. Mas cada um de nós terá uma sábia atitude se acontecimentos assim, trágicos e dolorosos, nos convencerem que a vida está em nossas mãos. Ainda podemos transformá-la.
 
Dom Murilo S. R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil
Fonte: http://cnbbne3.org.br

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