Reflexões do cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta
Publicamos abaixo o texto da primeira catequese quaresmal enviada a ZENIT por Dom Orani João Tempesta, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro:
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Manifestou o Pai sua misericórdia, reconciliando o mundo consigo em Cristo, pacificando pelo sangue de sua cruz tanto as coisas da terra como as dos céus.
(cf. 2Cor5,18ss;Cl 1,20).
(Introdução Geral do Ritual da Penitência, São Paulo, Loyola, 1999, p. 15.)
Caríssimos irmãos e irmãs,
Em 08 de dezembro de 2015 iniciou-se em todo o mundo católico, por expressa vontade do Santo Padre, o Papa Francisco, o Ano Jubilar Extraordinário da Misericórdia. E agora, iniciamos um momento forte e marcante da misericórdia em nossas vidas a partir de um tesouro riquíssimo das verdades que devemos crer, um tempo favorável ao encontro com Deus e libertação da pessoa na vivência da misericórdia, seja no vivermos o nosso Batismo, como na busca do sacramento da Penitência, em que encontramos, pela infinita misericórdia de nosso Redentor, a copiosa redenção de todos os pecados cometidos depois do Batismo. O próprio Francisco, na terça-feira, dia 26 de janeiro, ao lançar a mensagem para a Quaresma nos recordava que “a misericórdia de Deus transforma o coração do homem, o faz capaz de misericórdia” (Papa Francisco).
A Quarta feira de Cinzas, mesmo não sendo dia de preceito, no entanto, necessitamos de uma especial participação na Sagrada Eucaristia, uma vez que se inicia a Quaresma, estes quarenta dias de preparação à Páscoa. Inclusive afirma-se:
“O tempo da Quaresma visa preparar a celebração da Páscoa; a liturgia quaresmal, com efeito, dispõe para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos, pelos diversos graus de iniciação cristã, como os fiéis, pela comemoração do batismo e pela penitência”. (Normas universais do Ano Litúrgico e Calendário Romano Geral, n. 27).
Quaresma é um verdadeiro grande retiro, no qual dedicamos à penitência, à emenda dos vícios, à leitura e à oração um verdadeiro tempo oportuno de graça de Deus para uma conversão cada vez maior. Por isso, o fiel católico saberá discernir os meios mais eficazes, como jejum, abstinência e obras de caridade, ainda mais neste Ano Extraordinário da Misericórdia.
O jejum faz-se, de modo especial, na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa, mas recomendado em qualquer dia do ano, em especial às sextas-feiras. O jejum preparatório para a Páscoa não foi, na sua origem, de mais de um ou dois dias, limitado à sexta e ao sábado antes da Vigília. Este jejum rigoroso e absoluto, ainda que paradoxalmente festivo, terminava com a Eucaristia da noite pascal, passando-se assim da tristeza à alegria, do jejum à festa. Porém, desde muito cedo, este jejum pascal na expectativa da Ressurreição foi precedido de um jejum um pouco menos rigoroso dos primeiros dias da semana, como testemunha a Didascalia dos Apóstolos, no século III.
Cinzas é um sacramental que existe há muito tempo na Igreja, e de caráter penitencial recorda os pecadores que eram acolhidos no ato de confessar publicamente os pecados e neste momento recebiam do Bispo as cinzas em suas cabeças e com o dizer do Livro do Gênesis: “Lembra-te de que és pó, e ao pó hás de voltar” (Gn 3,19). Este rito durava todo o período quaresmal, quando na Quinta-feira Santa estes pecadores públicos eram reconciliados com Deus e com a Igreja. Ainda hoje permanece este costume das Cinzas, extensiva a todos os fiéis cristãos, algo que veio do Século X.
As cinzas representam a pequenez do homem. Abraão, ao falar com o Senhor, no Antigo Testamento, intercedendo por Sodoma, considera-se uma nulidade diante de Deus e, por isso mesmo, considera uma ousadia fazer um pedido: “Sou bem atrevido em falar a meu Senhor, eu que sou pó e cinza” (Cf. Gn 18,27). As cinzas nos lembram, pois, a condição precária do ser humano[1], a dor do homem que é acometido por uma desgraça, como o caso de Tamar[2], ou ainda, a condição do ser humano arrependido de suas faltas e pecados[3]. Portanto, as cinzas neste dia nos levam a aceitar a nossa condição mortal, enfrentando com coragem evangélica as provações desta vida e o reconhecer dependente de uma expiação numa atitude de sincera humildade.
Eis aí um gesto simples, mas que deve ser traduzido no dia a dia de nossas vidas e na vida do próximo, seja corporal como espiritualmente: alimentando, visitando e confortando e educando o irmão que está aí. O Papa Francisco ressalta, na Bula de Convocação do Jubileu Extraordinário, que:
“Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina”.
Eis o porquê de a Quaresma ser este tempo favorável e especialíssimo a cada um de nós, fiéis cristãos, que podemos sair da própria alienação existencial e ouvir a Palavra e as obras de misericórdia. Acolher, eis a chave desta Quaresma!
Acolher é tocar na carne de Cristo, nos irmãos e irmãs que tanto precisam, seja de alimentos, vestes, casas, uma simples visita, um olhar, bem como tocar no nosso ser de pecadores. O ano jubilar é uma importante ocasião para dar ao sacramento da Penitência a atenção celebrativa que ele exige. Já nos referimos a isso em nossa Carta Pastoral sobre a Misericórdia.
As palavras de Jesus são incisivas e claras — “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiveres, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20,23) — que encontrou na Igreja, no Magistério e na liturgia de seus primeiros séculos acolhida especial acerca da existência maravilhosa deste poder divino no Sacerdócio Católico, ou acerca do exato sentido de verdadeiro perdão alcançado pelos fiéis ao receber este Sacramento.
A dúvida que houve, de resto superada, foi no século III, de Tertuliano e dos Novacianos, que pretenderam excluir do alcance deste Tribunal de misericórdia certos delitos gravíssimos como o da apostasia, do homicídio, do adultério. Depois, no século XVI, quando os “reformadores” quiseram negar este Sacramento ou confundi-lo com o Batismo, o Concílio de Trento, valendo-se da mais pura hermenêutica dos Livros Sagrados e fundamentando-se na multissecular tradição da Igreja, firmou luminosamente a doutrina da Fé, promulgando magníficos decretos sobre a natureza deste providencial Sacramento.
Amados filhos e filhas, em nossos dias não se costuma pôr em dúvida a eficácia do Sacramento da Confissão. Aliás, o Vaticano II disse magistralmente:
“… aqueles que dele se aproximam obtém da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a Deus” (Lumen Gentium, 11).
E acrescenta:
“Lembrem-se os Párocos que o Sacramento da Penitência contribui no mais alto grau para fomentar a vida cristã”. (Christus Dominus, 30).
Por isso mesmo, a Quaresma vem em auxílio da mudança interior pela graça salvífica de Deus, e nos prepara para viver com intensidade o momento mais importante da história da salvação: a Páscoa. É o caminho para a Páscoa, que deve ser feito mediante a escuta da palavra de Deus e dos apelos divinos que chamam à conversão e à confiança na misericórdia divina.
Para sermos verdadeiros promotores da misericórdia, outro ponto que aqui quero salientar é uma alegre decisão de acolher a vida divina, grande dom do Senhor. Este tempo é oportunidade de encontro, de olhar para cima através da oração, olhar para o lado através da esmola, olhar para dentro de si por meio do jejum. Quaresma é chance de encontro consigo mesmo, com os outros, com Deus. Toda a liturgia e espiritualidade quaresmal é cristocêntrica, é tempo especial para um encontro vivo, decisivo, definitivo com Jesus Cristo.
Quaresma é muito amar, muito crer, muito meditar. O anúncio do Evangelho da paixão, morte e ressurreição do Senhor cativou a humanidade e transformou perversos em santos, fracassados em reabilitados, perdidos em renascidos. O mistério pascal nos torna apaixonado por Ele e pelo próximo, porque o Pai revela o máximo de seu amor misericordioso. Importante lembrar que a paixão causa assombro, impacto, descobertas e faz crescer nossa amizade com o Filho de Deus, que experimenta o silêncio do Pai, as tentações do Maligno, a grandeza dos discípulos, a zombaria do poder religioso, a prepotência do poder político. Tudo isso cria afinidade, sintonia, simpatia, atração por Jesus, verdadeiro Deus, verdadeiro homem, benfeitor da humanidade. Com efeito, a paixão de Jesus convence porque Ele é o amor de Deus, é o rosto e a personificação do amor de Deus. Nele temos um potencial de luz e esperança. Sem Jesus, o mundo seria mais desumano do que é. O seu sangue arrebatou um exército de mártires, confessores, virgens, profetas, missionários e santos. Jesus é atraente e surpreendente. Não teve medo do conflito e pagou alto preço para nos libertar de enganos, egoísmos, medos. A sua ressurreição é a certeza da vitória da vida sobre a morte.
O tempo da Quaresma facilita maior familiaridade e intimidade com Jesus de Nazaré. Conquistados e cativados por Ele, cheios de admiração, assumimos seu estilo de vida, seus pensamentos e afetos, seus critérios e valores. Mais ainda, nos propomos a acolher o destino de Jesus, a morte de cruz. O bom ladrão, o centurião romano, o Cireneu, a Verônica, as filhas de Jerusalém deixaram-se tocar e transformar vendo o jeito sereno, filial, obediencial de Jesus. Sempre fiel ao Pai e sempre compassivo e solidário com os outros. Jesus é a vitima que vai vencer, é o perdedor que vai ganhar, é a pedra rejeitada que se torna a pedra angular. Ele é o último que se tornou o primeiro.
Eis algumas questões que podem facilitar a nossa meditação: o que acolhi da mensagem de Jesus? Como manifestei a misericórdia concretamente em minha casa, em minha família, no meu bairro, na minha comunidade, na minha paróquia? Sou um entusiasmado da misericórdia de Deus manifestada no rosto de Jesus?
A conversão é um processo de mudança de mentalidade, de afetividade, de vontade e de personalidade. Todo convertido atesta: “Eu sou outro, não sou mais aquele que eu era”. Estamos tão perdidos nos pecados que chegamos a criar o “princípio de nossa autodestruição”. Pensemos na ecologia, na fome, na AIDS, na pobreza, na miséria, na violência e guerra, no fracasso familiar. Só nos resta dizer: “ou mudamos, ou perecemos”.
Jesus, rico em misericórdia, deu à Igreja, através dos apóstolos, o dom e o poder de perdoar pecados. Esta é uma das grandes revelações do Novo Testamento; é uma das maravilhas da salvação; é uma boa notícia, mais ainda; uma grande notícia da Boa Nova de Jesus, que é o Evangelho. Quanta gratidão, alegria e exultação por este dom inestimável que é o perdão dos pecados e o sacramento da confissão, do desabafo, de verbalização das emoções e sentimentos íntimos, dos pecados mais recônditos que até médicos e psicológicos recomendam a prática.
A Quaresma é o tempo propício para a conversão. Convertei-vos e vivereis. Os frutos da conversão são a alegria, a paz, a saúde e a felicidade. Quem faz a experiência do amor de Deus percebe logo onde se manifesta o pecado. Portanto, se o pecado é um fascínio, só um fascínio maior vencerá o veneno do pecado. Este fascínio maior é o amor de Deus. Deixemo-nos, porquanto, surpreender sempre de novo por Jesus de Nazaré e teremos mais razões para lutar pela justiça, para usar de compaixão com os fracos e viver com alegria.
Desejo vivamente que a Quaresma seja para os fiéis cristãos um período propício para propagar e testemunhar o Evangelho da misericórdia em todo lugar, pois a misericórdia constitui o âmago de uma autêntica evangelização. Com razão, confio à intercessão de Maria, Mãe da Igreja. Seja Ela quem nos acompanhe no itinerário quaresmal. Com tais sentimentos, de coração abençoo a todos com afeto.
Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 2016
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